Para além da audição
Ouvir é apenas uma das funções de um
sistema complexo, que nos ajuda a entender
quem somos, interagir com tudo e com
todos e viver com equilíbrio neste mundo.
Por Angélica Queiroz
Martelo, bigorna e estribo. Não se trata de ferramentas, embora tenham esses nomes justamente por se parecerem com elas: estamos falando de ossículos do ouvido humano, que cabem na ponta dos dedos, mas amplificam as vibrações do som em mais de 20 vezes. E é apenas uma parte de um sistema complexo, que nos permite conexão com o mundo mesmo antes de nascer. Decerto não lembramos, mas é ainda dentro do útero que temos o primeiro contato com a voz e outros sons que provêm da mãe, como as batidas do coração e até seus passos – e continuamos ligados quando ela conversa com outras pessoas. Esses e outros fatos admiráveis são destaque no mês dedicado ao “Ouvir”, sentido tão importante para nossa interação com tudo e com todos. Boa leitura! (E boa audição, talvez: um estudo do Departamento de Psicologia da New York University mostra que mais de 80% das pessoas ouvem uma voz quando estão lendo.)
A superaudição do melhor amigo
O som é uma onda de pressão mecânica que caminha pelo ar e chega até o ouvido como vibração. Lá, o tímpano e uma cadeia de ossinhos levam essa vibração para dentro da cóclea, órgão que a converte em sinais elétricos e, pelo nervo auditivo, os envia até o cérebro, onde finalmente o som é decodificado. Mas, mesmo que a parte física funcione perfeitamente, vários outros fatores influenciam no entendimento da informação. “Quando a gente escuta um língua desconhecida, por exemplo, o som é percebido, mas não entendemos o que significa”, exemplifica o neurologista dr. Alexandre Souza Bossoni. Uma curiosidade é que cada parte do ouvido é responsável por identificar uma dada frequência – isso se tivermos células sensíveis a ela. “A gente só escuta o que está biologicamente programado para ouvir. É por isso que os cães ouvem mais que a gente, pois são sensíveis a frequências de som diferentes.”
Barrando o que não serve
Em princípio, todos os sons ao redor chegam ao ouvido, são captados pelo tímpano e seguem para o córtex auditivo primário, mas nem tudo é aproveitado. “Estou falando com você e tem um monte de som acontecendo em volta – carros na rua, passos, outras pessoas conversando –, mas você não percebe esses sons porque ignora a existência deles para prestar atenção na nossa conversa.” Por trás desse fenômeno, como explica o neurologista dr. Alexandre Souza Bossoni, está nossa capacidade de selecionar só aquilo que interessa – a não ser que algum outro som seja muito forte ou repetitivo. Diversas pesquisas mostram, no entanto, que é preciso estar atento para ouvir efetivamente, e que a maioria das pessoas ouve menos do que pensa ou, pelo menos, não absorve as informações sonoras como deveria.
Como você se ouve?
Sabe aquela sensação estranha de quando a gente escuta a própria voz em uma gravação? Isso acontece porque, quando falamos, a vibração passa por dentro da cabeça, pelos ossos e músculos antes de chegar ao tímpano, portanto é natural que nos soe de maneira única. Mas é exatamente como nas gravações que a gente soa para os outros. “Sua voz é essa. Se não lhe agrada, sugiro que procure a fonoaudiologia”, diz a dra. Eliane Carrasco, há 30 anos atuando nessa especialidade. Ela lembra que a fala e a audição andam sempre juntas e que crianças que demoram a falar, por exemplo, podem ter algum problema para ouvir, eventualmente apenas uma inflamação ou cerúmen. “Sabe aquela sensação de estar dentro de uma caixa? Para nós, nem tanto, mas para quem está aprendendo a falar, faz uma enorme diferença.”
Vivendo num mundo barulhento
Conforme a otorrinolaringologista dra. Mônica Menon, as pessoas ainda não dão a atenção que os ouvidos merecem e dificilmente procuram um especialista para avaliação rotineira. “O mundo hoje está mais barulhento e, para além disso, os hábitos mudaram. As pessoas têm celular, interfone, fone de ouvido e ruído de trânsito todo dia. A preocupação auditiva deveria ser bem maior.” É cada vez mais comum jovens e até crianças com alguma perda auditiva, o que poderia ser evitado se cuidados como intervalos no uso dos fones e uso de tampões em algumas ocasiões fossem tomados. “Tenho pacientes que trabalham com música, mas se cuidam e estão tudo bem. E há outros que acham que não precisam se preocupar – mas precisam. A tendência de alguma perda auditiva é algo individual, mas o certo seria ninguém querer correr o risco.”
Evitando a surdez súbita
Sabia que ficar muito tempo na postura errada e mexendo no celular pode fazer com que menos sangue chegue aos ouvidos? “Pode ter gente por aí ouvindo menos do que pensa”, observa a otorrinolaringologista dra. Mônica Menon. Ela ressalta que muitas estruturas da audição são frágeis e que algumas não cicatrizam ou se recompõem, por isso os casos de perdas irrecuperáveis. Sinais de que algo não vai bem no ouvido demandam investigação, principalmente para descartar a surdez súbita – um ataque viral aos nervos da audição, que tem poucos dias para ser tratado. “Não dá para deixar para a semana que vem”, recomenda a especialista. É preciso ter cuidado, também, se o incômodo com a pressão é muito grande toda vez que você viaja de avião, por exemplo. “Geralmente, mascar chiclete faz com que a musculatura abra e feche, tirando a pressão do ouvido. Mas, se a dor é forte ou frequente, vale a pena checar o porquê. Uma pressão grande pode causar problemas, o tímpano é uma membrana muito fininha.”
Uma forcinha do coração
Pouca gente sabe, mas há uma relação direta entre coração e audição. Isto porque dentro da cóclea existe um líquido que depende de oxigênio e nutrientes fornecidos pelo sangue para ser sintetizado. O cardiologista e geriatra dr. Jayme Tobias Wainman explica que todas as recomendações para prevenir e retardar o aparecimento de alterações no coração, como não ser sedentário, se alimentar bem, não fumar, manter os níveis de gordura no sangue baixos e controlar hipertensão arterial, também servem para conservar boa audição. “Algumas doenças cardiovasculares alteram o fluxo sanguíneo e causam traumas nos vasos da orelha interna. Ela é tão sensível, que distúrbios de audição, principalmente nas frequências mais baixas, também podem ser sinal de alerta para uma possível doença cardiovascular.”
Cera não é sujeira
A gente já ouviu dizer que não convém introduzir hastes higiênicas no ouvido para evitar lesões, mas também precisamos saber que cera não é sujeira. Produzida pelos cílios na entrada do ouvido, e não em seu interior, essa substância tem função antibacteriana. Algumas pessoas produzem pouca cera e são, geralmente, as que têm otite toda vez que vão à praia, porque falta proteção. Há também aquelas que produzem cera em excesso, casos em que a retirada deve ser feita por um especialista. “Hastes são basicamente contraindicadas. Eu receito só para passar pomada lá dentro quando precisa”, diz a otorrinolaringologista dra. Mônica Menon. “Há formas melhores de limpar o ouvido por fora – com um lenço de papel, por exemplo.” Segundo ela, acidentes graves resultantes do uso de hastes acontecem com certa frequência.
Para manter o equilíbrio
É dentro da orelha interna que fica o aparelho vestibular, conhecido como labirinto, ligado à cóclea. São os canais semicirculares do labirinto que informam ao cérebro sobre os movimentos do corpo no espaço. “Por isso, alguns problemas de audição podem influenciar em nosso equilíbrio e postura”, explica o neurologista dr. Pedro Yvo Adri Cezarino. Quando as informações passadas por esses canais não são as mesmas da visão, ocorre a impressão de desequilíbrio, com sintomas como tontura e vertigem. Já nem é novidade: tudo está interligado!
Delay para gagueira
Em uma cena do filme O Discurso do Rei, o monarca gago consegue uma boa oratória com a ajuda da fonoaudiologia, utilizando recursos para mascarar os problemas da fala. A fonoaudióloga dra. Eliane Carrasco, que conhece bem as relações entre gagueira e audição, afirma que em alguns casos, tal como no filme, estímulos sonoros conseguem diminuir a produção anômala da fala. Já existe, inclusive, um aparelho semelhante ao auditivo que gera um pequeno atraso da fala, como o delay de telefones celulares antigos. Em condições normais, o efeito costuma incomodar e até atrapalhar, mas costuma ser útil para quem precisa reduzir a gagueira, já que a sensação de estar falando em uníssono com outra pessoa pode amenizar o problema. “Certa vez, ajudei um paciente em um depoimento lendo junto ao lado dele. Claro que isso varia de pessoa para pessoa, mas em alguns casos a melhora é muito grande.”
Processando informação
Você certamente conhece alguém com dificuldade para aprender um segundo idioma ou conversar em lugares ruidosos. “Pode ser sintoma de um distúrbio de compreensão da fala, intimamente ligado à atenção”, alerta o neurologista, dr. Pedro Yvo Adri Cezarino. Essas pessoas percebem o som, mas têm problemas na habilidade neurológica de processar o que ouvem, apresentando dificuldades de extrair conhecimento a partir disso e de ignorar o som não relevante. O especialista lembra que os primeiros sintomas, geralmente, surgem na idade escolar e, como resultam no baixo rendimento da criança, são frequentemente confundidos com outros transtornos, como déficit de atenção.
Usando a TV como termômetro
Com o passar dos anos, as estruturas do corpo se tornam menos funcionais e a audição também é prejudicada. O cardiologista e geriatra dr. Jayme Tobias Wainman explica que, conforme a idade avança, as articulações dos ossos internos e a musculatura que segura o tímpano ficam cada vez menos flexíveis, diminuindo os estímulos para o sistema nervoso. “É isso que os aparelhos auditivos fazem: aumentam o volume do som para que ele continue causando esses estímulos necessários para que possamos ouvir.” A televisão com volume alto demais pode estar indicando a hora certa de procurar um especialista.
SÁBIOS CONSELHOS
Escute bem o que os especialistas
recomendam para ouvir bem e sempre.
Acompanhe os pequenos
Criança com dificuldade na escola pode não estar ouvindo direito. O ideal é fazer uma audiometria nessa fase da vida para garantir que tudo está bem.
Resista à tentação
Cera é proteção. Esforce-se para não introduzir a haste dentro do ouvido, evitando lesionar suas estruturas internas.
Maneire nos fones de ouvido
A indicação é usá-los o mínimo possível, com pausas de 10 minutos a cada 50 minutos, sem abusar do volume.
Saia da caixa
Quando for a grandes shows, nos quais a música toca muito alto, leve tampões de ouvido e prefira lugares distantes das caixas de som.
Cuide do coração
Comer bem e fazer exercícios regulares é benéfico para o corpo todo, inclusive para o coração, colaborador sistemático da boa atividade do ouvido.
Use na boa
Assim como óculos ajudam a ver melhor, aparelhos auditivos ajudam a ouvir melhor. Simples assim, sem qualquer razão para preconceito.
Foque no agora
Potencialize a admirável capacidade de sua audição, que separa o joio e o trigo da massa sonora, e tente manter foco apenas no que importa, a despeito do barulho do mundo.